Há muito tempo que os sociólogos Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso derrubaram o mito da democracia racial no Brasil, mostrando que, aqui, o racismo é, por um lado, negado por conta da evidente miscigenação e dos espaços de convivência entre brancos e negros (no caso específico de Salvador, as festas de largo e o Carnaval), e, por outro, ele é reafirmado por conta das escolas, cursos universitários e clubes frequentados quase exclusivamente por brancos e pelo fato de quase não haver negros nos altos escalões das grandes empresas nacionais e multinacionais que operem em terras brasileiras, sem falar que os negros são maioria entre as vitimas da violência urbana e do desemprego.
Há muito tempo que os dois sociólogos – e, depois deles, outros tantos intelectuais das ciências humanas que se dedicaram às questões de etnia e relações raciais – deixaram claro que o Brasil é, sim, um país racista (de um racismo peculiar, à brasileira, ou seja, que finge que não é racismo), mas isso não impede que haja quem queira não só desqualificar as reivindicações políticas dos movimento negro, mas principalmente fazer oposição a elas como se não fossem justas ou nada tivessem a ver com justiça social. Um exemplo?
Depois de aprovado no Senado, em 16 de junho, o Estatuto da Igualdade Racial entrou em vigor anteontem, dia 20, sem que as reivindicações históricas dos negros organizados fossem contempladas. O texto do estatuto perdeu quatro dos artigos considerados mais importantes: a previsão de cotas para negros nas universidades federais e escolas técnicas públicas; o incentivo fiscal para empresas que contratarem negros; a reserva de vagas em produções da televisão e do cinema e em partidos políticos e a proposta de implantação de políticas de saúde voltadas para o combate a doenças com maior incidência entre os negros, como, por exemplo, a anemia falciforme e o lúpus.
Ora, como explicar a recusa em atender essas reivindicações justas senão por meio da mentalidade racista que vigora entre a maioria dos congressistas e, portanto, nos grupos sociais que eles representam? Mentalidade racista que já foi descrita em suas diferentes materializações por cientistas sociais e políticos que se dedicaram a refletir sobre o lugar subalterno dos negros na sociedade brasileira e sobre sua organização política com intuito de reparar essa realidade.
O que não impede que haja quem queira dar invisibilidade a essa organização e suas reivindicações seja por alienação ou por dificuldade de se assumir racista. Um exemplo? Quando, nas redes sociais de que faço parte, tratei da derrota do movimento negro (nesse caso do Estatuto da Igualdade Racial) com a frase “As leis de nossa sociedade refletem a mentalidade do macho adulto branco (e rico) sempre no comando”, houve quem tenha feito tábua rasa do principal assunto em questão para criticar o uso da expressão “macho adulto branco” porque seria uma “importação” da expressão WASP – White Anglo-Saxon Protestant (Anglo-Saxão Branco e Protestante), logo, condenável, porque seria uma concessão à cultura dos Estados Unidos.
Ora, como explicar uma atitude dessas senão por meio da mentalidade racista que não quer se assumir racista, seja por vergonha seja por causa do imperativo do politicamente correto?Desconstruir ou - por que não? – destruir essa mentalidade racista; desmascarar os esquemas conceituais e as representações literárias, visuais e audiovisuais que colocam o negro num lugar subalterno é a principal tarefa do movimento negro e de todas as pessoas de bom-senso doravante.
O fato de o Estatuto da Igualdade Racial ter entrado em vigor sem contemplar as reivindicações históricas do movimento não quer dizer que ele não possa ser alterado no futuro, de modo que atenda esses apelos justos; não quer dizer que outras ações não possam ser feitas no sentido de construir, no Brasil, uma democracia racial que não seja só um mito no sentido de mentira ou fantasia.
Fonte:
http://www.correio24horas.com.br/colunistas/detalhes/artigo/jean-wyllys-o-povo-negro-pede-igualdade/
22.10.2010
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